A Cracolândia acabou? O que se sabe sobre mudança do fluxo de usuários
A Rua dos Protestantes, onde fica a Cracolândia, amanheceu vazia. Usuários estariam ocupando outras regiões, em uma remoção “forçada”
atualizado
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São Paulo — A Rua dos Protestantes, conhecida por abrigar os usuários da Cracolândia, no centro de São Paulo, amanheceu vazia nessa terça (13/5). O fluxo, como é chamada a concentração de dependentes químicos, desapareceu um dia após o governador do estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmar que sua gestão estaria fazendo “o que ninguém teve coragem de fazer”.
Tarcísio publicou no X (antigo Twitter), nessa segunda (12/5), um trecho de uma entrevista que concedeu à rádio Massa FM. Na legenda da publicação, o governador foi enfático, e afirmou que “a Cracolândia vai acabar”.
“Estamos fazendo o que nunca foi feito, o que ninguém teve coragem de fazer. Por isso, reforço aqui meu compromisso: a Cracolândia vai acabar”, disse.
A Cracolândia acabou?
- A apuração do Metrópoles identificou que o fluxo, que costumava lotar diferentes vias da Santa Ifigênia, se espalhou pela cidade — como já aconteceu em outros momentos nos mais de 30 anos de existência da Cracolândia.
- Comerciantes do entorno da Favela do Gato, no Bom Retiro, afirmaram à reportagem que a região amanheceu repleta de pessoas em situação de rua, em um volume incomum para a rotina do território.
- Na noite de terça, o local abrigava pequenos grupos de usuários, que se concentravam especialmente em praças próximas à Avenida do Estado.
- Um bloqueio feito por viaturas da Polícia Civil impediu a entrada na comunidade. Questionada, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que os agentes estavam procurando suspeitos de envolvimento em um roubo ocorrido pela manhã no bairro Santa Cecília, a pouco mais de 4km de distância.
- Na Praça Marechal Deodoro, também na região central, uma concentração de cerca de 60 usuários ocupava o espaço na noite de terça. Pelo menos cinco deles falaram com a reportagem e relataram que o território tem ficado mais cheio nos últimos dias.
- Segundo estimativas dos próprios dependentes químicos, o fluxo ali chega a ter 500 pessoas durante a madrugada, um número próximo ao que se via na Rua dos Protestantes nas últimas semanas.
Um vídeo mostra a Polícia Militar (PM) controlando o fluxo de usuários na Praça Marechal na noite dessa terça. Veja:
Repressão
Os usuários relataram à reportagem que a repressão por parte da Guarda Civil Metropolitana (GCM) piorou na última semana, especialmente nas ações do batalhão de elite da corporação, a Inspetoria de Operações Especiais (IOPE).
Segundo eles, os guardas fazem uso da força para concentrar o fluxo em um território menor, o que facilitaria o controle. Para isso, os agentes cometem agressões físicas, utilizam cassetetes, sprays de pimenta e atiram com balas de borracha na direção dos usuários.
Vinicius, que mora há 10 anos na rua, sendo a maior parte no fluxo da Cracolândia, disse ao Metrópoles que, na semana ada, os guardas civis aram a impedir que os usuários entrassem no fluxo portando qualquer item que não fosse a roupa do corpo.
“Fizeram uma varredura para levar para o fluxo só a roupa do corpo. Precisava dispensar manta, comida, produto de higiene”, disse.
Os guardas também proibiram a entrada de bebida alcoólica, cigarro e mercadorias que os usuários geralmente usam para fazer permutas entre si, como peças de roupa e outros objetos. Até mesmo documentos pessoais e dinheiro foram apreendidos.
“Eles pegam o documento e não devolvem. Não devolvem nada”, disse Robson, usuário que vive na Praça Marechal Deodoro.
Segundo os dependentes químicos, após essas varreduras, os fluxos começaram a diminuir consideravelmente – mas não acabaram.
Remoção
Relatos do aumento do número de usuários nos bairros de periferia e em cidades da Grande São Paulo têm crescido nas ruas e nas redes sociais. Moradores de territórios como o Jardim Ângela, na zona sul, e a Vila Medeiros, na zona norte, relatam uma presença crescente de pessoas em situação de rua, o que não se via antes.
“Vieram para a periferia. Aqui nas margens do rio Aricanduva está lotado, em Itaquera também. A gente pede ajuda e ninguém da prefeitura tá nem aí”, comentou uma mulher em uma publicação do Instagram da Prefeitura de São Paulo que comemora o desaparecimento da Cracolândia (veja mais abaixo).
Os usuários denunciam que o fluxo diminui porque os dependentes químicos estariam sendo levados à força, em vans, para outros locais, e até mesmo outras cidades. Relatos ouvidos pela reportagem citam municípios como Campinas, no interior de São Paulo, e Santos, no litoral paulista.
“O governo limpou [a região]. Isso vem acontecendo há 15 meses”, disse uma ex-funcionária da Organização Social de Saúde (OSS) que atua na Cracolândia, e que prefere não se identificar. Segundo ela, as equipes de atendimento buscaram pelos usuários após o desaparecimento do fluxo, “porém sem sucesso”.
O que diz a Prefeitura
Questionada, a Prefeitura de São Paulo encaminhou um áudio do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que não cita as denúncias de agressões físicas e remoções forçadas. Na mensagem de voz, o político diz que a dispersão dos usuários é uma “vitória da sociedade”.
Nunes destacou ainda que a questão da Cracolândia é um “trabalho constante”. “Dá para dizer que resolveu todo o problema? Obviamente que não resolveu todo o problema, mas a gente avançou muito, e a gente precisa comemorar”, disse.
“Eu, prefeito de São Paulo, faço um apelo: comemoremos os avanços. Vamos parar de picuinha e ficar olhando coisas que evidentemente não devemos esconder, mas dar luz às coisas mais importantes e parem de dar luz a pequenos pontos para querer descaracterizar e para poder querer desconsiderar o avanço que o governo de estado, que a prefeitura fez, que os agentes de saúde, de assistência social, porque gente, falando do fundo do meu coração, tem hora que cansa”, afirmou Ricardo Nunes.
Em uma agenda pública nessa terça, o prefeito afirmou que foi pego de surpresa com a ausência de usuários na Rua dos Protestantes.
Nunes disse que a prefeitura ainda está “tentando entender o movimento” e que a situação “não está resolvida”. “Verdadeiramente surpreendeu. Obviamente que a gente já vinha reduzindo gradativamente todos os dias a quantidade de pessoas lá, pessoas indo para tratamento, voltando para os seus estados”, disse o prefeito.